sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Leitura de O Peregrino em Tempos Globais - Parte I


Na Inglaterra do século XVII no contexto dos pensamentos construídos pelos variados grupos sociais durante a Revolução Inglesa em 1640, foi publicado em 1678 o livro O Peregrino de autoria de John Bunyan, a partir dessa postagem desejo convidar você a fazermos juntos uma releitura dessa obra que serviu como esteio para construção da identidade de muitos crentes protestantes.

A nossa leitura consiste em pensarmos O Peregrino como uma forma de "ser e estar no mundo" nos tempos globalizados que experimentamos atualmente, sem a pretensão de fazer um exercício dogmático e institucional, mas um repensar existencial do grande desafio que a cada dia somos estimulados a encarar que é o de reinventar a nossa vida e mundo com as cores do Evangelho de Jesus Cristo. Nesse momento desejo exercitar o seu olhar em linhas gerais de que John Bunyan em O Peregrino fez uma leitura do seu mundo nas interfaces históricas da Inglaterra do século XVII.

O PEREGRINO foi produzido primeiramente no contexto que denominamos de desdobramentos da Reforma Protestante na Inglaterra. Da Reforma introduzida pelo rei Henrique VIII no período de 1509 a 1547, com o propósito primordial de romper com a autoridade papal, procurando a legitimação da grandeza da Igreja Inglesa.

Uma Reforma que consistiu numa ruptura com o poder papal, com a formação da Igreja Anglicana, coordenada pelo rei, mas com a preservação da hierarquia da Igreja Católica Romana e as práticas litúrgicas com doutrinas como: a transubstanciação, o celibato e a confissão auricular. A Igreja Anglicana teve um desenvolvimento maior no reinado de Elizabete I, reinado em que foram redigidos os Trinta e Nove Artigos da Religião que passaram a ser a confissão de fé da Igreja Oficial da Inglaterra, uma confissão que seguia uma perspectiva protestante.

Para muitos religiosos oriundos grupos sociais variados tal reforma teve um caráter "centralizador" e "superficial", não se constituiu em uma realização democrática com suas idéias religiosas que formavam a sociedade inglesa. Assim sendo, no século XVII encontramos o desenvolvimento intensivo de pensamentos e práticas formulados por esses grupos em busca de uma reforma mais abrangente na Igreja da Inglaterra.

Tais grupos denominados de "protestantes radicais" não estavam organizados em único grupo, mas ficou mais conhecido com a consolidação do movimento chamado de "puritanismo". Muitos puritanos eram homens de propriedades que opunham-se a muitos daqueles elementos do culto tradicional que a Igreja Anglicana tinha conservado como: o uso da cruz no culto, certas vestimentas sacerdotais e a questão da comunhão ser celebrada em uma mesa ou um altar (GONZALEZ, 1993: p.51, 72).

Em segundo lugar, na Inglaterra do século XVII dentre esses radicais muitos eram das camadas sociais pobres e subalternas que instituiram movimentos vistos como "heréticos". As pessoas dessas camadas formularam pensamentos de crítica aos líderes religiosos que pertenciam a Igreja Oficial (Igreja Anglicana) e "irreligião" com um grau forte de ceticismo em relação às instituições e crenças da sociedade (como o inferno, o céu, o pecado, a ressurreição dos mortos). Desses grupos temos os "levellers, diggers e pentamonarquistas" que propunham novas formas de condução da política e economia. Enquanto outros grupos buscaram outras perspectivas de fé como os "batistas, quacres e muggletonianos". (HILL, 1987: 31-32).

Em terceiro lugar, podemos enxergar tais movimentos como uma resposta existencial às constantes enfrentadas por essas camadas subalternas. O século XVII na Inglaterra foi marcado por crises econômicas, sociais e espirituais, onde essas camadas eram as mais vulneráveis. Assim sendo, encontraram uma resposta existencial através da leitura e meditação da Bíblia, impulsionados pela crença de que qualquer um poderia entender a Deus sendo necessário ter dentro de si a graça divina, todas as pessoas tinham o direito de ler a Escritura Sagrada.

Havia assim a possibilidade de aplicação das mensagens expressas na Escritura Sagrada para as constantes crises sociais vividas. Como nos mostra HILL (1987: p.105) sobre um jovem chamado Arise Evans que viveu neste cenário e a sua relação com a Bíblia: “Antes eu olhava as Escrituras como história de coisas que ocorreram em outros países e que dizem respeito a outras pessoas; agora, porém, eu as via como um mistério a ser decifrado em nosso tempo, e que portanto também se referia a nós.”

É importante destacar que essa atitude de Arise Evans em começar a olhar a Escritura Sagrada como um conjunto de realidades envoltas de um mistério, que necessitava ser descoberto e interpretado em seu contexto social. Isto porque acreditava que as mesmas foram escritas como resposta as suas crises espirituais e sociais. Foi praticada por muitas outras pessoas que sofreram com a crise econômica e política deste período, e que através dela encontravam resposta para essa realidade. Surgia assim nesse cenário um grande número de pregadores que pertenciam as classes subalternas. Conforme HILL (1987: p.105-106):

"Uma tal atitude (a de Arise Evans) deve ter sido também a de muitas vítimas da crise econômica e política, que se voltaram para a Bíblia em busca de uma direção nestes anos de perplexidade mental. Pois os anos 1640 e 1650 foram a grande época dos “pregadores operários” – leigos como Bunyan, que interpretavam a Bíblia com luzes autodidatas, manifestando toda convicção e excitação de quem faz uma descoberta nova."

Em O PEREGRINO encontramos uma vivência com o propósito de obtenção de respostas existenciais em relação às crises sociais que geravam nas pessoas, em especial das camadas subalternas, que o próprio Bunyan também pertencia. Sendo assim, a religiosidade e fé experimentada por essas camadas como uma vivência transcendente a filiação institucional e acessível a todas as pessoas através da leitura da Bíblia.

Em quarto lugar, tais grupos populares pensavam a vida a partir de dois princípios: o primeiro, que a verdade possui um caráter permanente; o segundo, que a fé é uma realidade experimental das verdades da Escritura, por causa do Espírito de Deus.

Pensavam a verdade como permanente, sendo a revelação de Deus dada aos fiéis através da iluminação, em que novas verdades eram descobertas e expressavam respostas as necessidades concretas do seu tempo. Enquanto a fé era uma realidade que o sujeito experimentava dentro de si as verdades da Escritura e eram superiores as verdades tradicionais transmitidas pelas autoridades religiosas. Ressaltando, assim, a fé como uma vivência do coração que alcança a sua alta expressão na praticidade dessas verdades, na realidade cotidiana das pessoas (HILL, 1987, p.350).

Em outra postagem continuamos a discussão das relações de O Peregrino com essas ideias produzidas na Inglaterra do século XVII, para pensarmos como John Bunyan fez uma leitura do seu mundo em suas contradições e crises, na perspectiva de um reinventar constante da fé a partir do Evangelho de Jesus Cristo num movimento de transformação existencial nas pegadas de vida e liberdade em abundância.


Referências

HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça: idéias radicais durante a revolução inglesa de 1640. Trad. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

Cleófas Júnior

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